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Mais um Projeto de Lei sobre autoescola

A temática trânsito não recebe a atenção que merece, considerando sua relevância social por estar intimamente ligado à vida das pessoas nas questões triviais do cotidiano, como o ato de se deslocar. Todos têm um papel no trânsito, seja como condutor, passageiro, ciclista ou pedestre. Por tamanho envolvimento, sempre surgem pautas legislativas a esse respeito, pois os parlamentares costumam apresentar propostas de melhoria, mas ultimamente os projetos de lei tem sido cada vez mais esdrúxulos.


Um exemplo disso é o PL 4474/2020 de autoria do Deputado Federal Kim Kataguiri (DEM-SP) que pretende alterar o Código de Trânsito Brasileiro para tornar facultativa a frequência em autoescolas, na obtenção da Carteira Nacional de Habilitação, através de alternativas nada convencionais e sem nenhum ganho efetivo para a segurança no trânsito.


De acordo com a proposta do ilustre parlamentar, o conteúdo teórico do curso de primeira habilitação deveria ser disponibilizado de forma gratuita pelos DETRANs e o candidato estudaria por conta própria. As aulas práticas de direção poderiam ser ministradas por instrutores devidamente credenciados pelo órgão, desde que seja habilitado há pelo menos cinco anos e não tenha sofrido penalidade de suspensão ou cassação do direito de dirigir. Sendo assim, não custa perguntar: Você já tentou aprender a dirigir com seu pai, marido, irmão ou outro parente? Se a resposta for positiva, certamente vai entender o porquê do questionamento.


O deputado ainda enfatiza que o objetivo com esse PL é encontrar o equilíbrio entre a necessária segurança no trânsito (sic) e a observância de um regime que permita ao candidato optar pela forma de instrução que seja adequada e conveniente para si. Através das suas redes sociais alegou ainda que o Brasil deveria adotar o mesmo modelo de processo de habilitação existente nos Estados Unidos, colocando fim ao que ele chama de “máfia das autoescolas”.


De acordo com o dicionário de língua portuguesa, a definição de “máfia” é qualquer associação ou organização que, à maneira da Máfia siciliana, usa métodos inescrupulosos para fazer prevalecer seus interesses ou para controlar uma atividade. Esse foi o adjetivo dado pelo deputado Kim Kataguiri às instituições autoescolas, simplesmente para que tenhamos a exata dimensão da afronta e o desrespeito desse parlamentar aos milhares de profissionais que encaram a árdua tarefa de educar para o trânsito.


É comum ouvir pessoas utilizarem outros países, a exemplo dos Estados Unidos, como referência quando se trata de um modelo ideal de processo para se habilitar, pagando apenas algumas taxas e fazendo as avaliações que são exigidas, equívoco naturalmente cometido por aqueles que não conhecem a fundo o trânsito brasileiro. No entanto, cabe um questionamento em tal afirmação: A realidade do trânsito norte americano, a educação e consciência dos seus condutores e as punições pelo descumprimento da lei são as mesmas do Brasil?


De acordo com dados da Seguradora Líder, que administra o Seguro DPVAT, somente no ano de 2019 foram 353.232 acidentes de trânsito no Brasil e um total de 40.721 mortes registradas. Os números são assustadores, pois a média é de 111 mortes por dia no trânsito brasileiro. Considerando que a educação é a melhor arma para combater essas estatísticas, como o fim do processo de habilitação poderia contribuir?


É preciso realmente aprimorar esse processo idealizado em 1998 com a entrada em vigor da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) e regulamentado em 2004 com a Resolução nº 168 do Conselho Nacional de Trânsito, que sofreu algumas alterações até ser substituída pela Resolução nº 789/2020, em vigor desde 1º de julho de 2020, mas sem mudanças significativas.


Os esforços deveriam ser direcionados para a melhoria e ajustes no processo de primeira habilitação, fazendo com que a autoescola se torne de fato um Centro de Formação de Condutores, que os profissionais envolvidos, a exemplo de instrutores, diretores e examinadores, passem por qualificação constante, de modo que ofereçam o melhor serviço e façam a diferença. Afinal de contas, qual classe profissional não tem suas falhas ou maus profissionais? Querer desqualificar uma classe inteira se apoiando na generalização não parece ser uma postura adequada.


Até mesmo os valores cobrados atualmente precisam ser revistos, tem que refletir fielmente a realidade e fazer jus à contraprestação do serviço. Inclusive, as taxas cobradas pelo Estado para abertura do processo de habilitação e realização de exames devem servir para a realização do serviço em si e não objetivar o lucro, até porque estamos falando de um serviço de natureza pública. Apesar do autor da proposta justificar seu Projeto de Lei única e exclusivamente na questão da onerosidade do processo para obtenção da primeira habilitação, em momento algum fez qualquer menção aos valores cobrados pelos DETRANs. A propósito, cerca de 40% dos custos para se obter a CNH não provém dos valores cobrados pelos serviços oferecidos pela autoescola. Será que o parlamentar não sabe disso?!


Portanto, o curso de formação de condutores não tem que acabar, ele precisa ser melhorado. Muitos condutores terão esse único contato com a educação para o trânsito em toda sua vida, dispensá-lo completamente contribuirá tão somente para colocar no trânsito condutores com formação deficiente, desconhecedores de regras básicas sobre legislação de trânsito e direção defensiva, tornando o trânsito um espaço ainda mais conturbado.


Como garantir que um condutor habilitado há pelo menos cinco anos terá condições de formar outro condutor realmente preparado para o trânsito? O Instrutor de Trânsito é o profissional capacitado para a função, haja vista ter passado por um curso de formação e ter a técnica necessária para instruir. Não basta saber trocar marcha, acelerar e frear, pois o trânsito não se limita a isso. É preciso estar bem capacitado para que se possa capacitar com qualidade, sendo este mais um motivo de aprimoramento no processo.


A educação para o trânsito não deveria se limitar aos CFCs, tanto que no próprio CTB, especificamente em seu art. 76, existe a previsão legal para promoção da educação para o trânsito em todos os níveis de ensino, que seria um ganho extraordinário, contribuindo efetivamente para a melhoria do trânsito. Convém destacar a Resolução nº 265/2007 do CONTRAN, que dispõe sobre a formação teórico-técnica do processo de habilitação de condutores de veículos automotores e elétricos como atividade extracurricular no ensino médio e define os procedimentos para implementação nas escolas interessadas. Entretanto, é algo que nunca saiu do papel, não parece tão interessante politicamente quanto a ideia de qualquer pessoa com mais de cinco anos de habilitação formar um condutor.


Curiosamente só se utiliza como exemplo a ser copiado do trânsito nos Estados Unidos aquilo que é conveniente. Podemos citar dois casos que poderiam ser implementados no trânsito brasileiro. O primeiro deles é em relação ao ônibus escolar que, ao parar na via e estender uma placa de “stop”, obriga todos os demais veículos atrás dele a parar, até mesmo se for uma rua de mão dupla, os veículos no sentido contrário do ônibus também devem parar. Essa medida protege as crianças que vão desembarcar e possivelmente atravessar a rua. Desrespeitar essa regra é passível de punição.


Façamos um breve exercício mental imaginando um condutor brasileiro, voluntariamente, parando seu veículo independentemente de estar atrás ou em sentido contrário a um ônibus escolar, garantindo um desembarque seguro das crianças. Lamentavelmente poucos são os condutores que fariam algo assim, isso porque as realidades no trânsito são diferentes.


O segundo caso é o consumo de álcool pelos condutores, quando no Brasil se discute a constitucionalidade da recusa ao teste de alcoolemia e o entendimento é o de que o homicídio praticado em tais circunstâncias é crime culposo. Nos Estados Unidos, a depender do estado, a legislação prevê penas que variam entre cinco a quinze anos de prisão, mas existem casos de pessoas condenadas a vinte anos por dirigir embriagado e matar alguém no trânsito.


Conseguiríamos fazer o mesmo exercício mental e imaginar algo assim no Brasil? Em casos como esse são levantadas tantas teses e princípios que, para alguns, dirigir depois de beber não parece ser nada anormal, é quase um direito do cidadão que trabalha e paga seus impostos. Sabe por que parlamentares não apresentam propostas para endurecer a lei e punir com mais rigor quem pratica esses absurdos no trânsito ao invés de envidar esforços para retirar uma ferramenta importante que é a educação para o trânsito? A resposta não poderia ser mais óbvia: Porque são medidas impopulares!


Ao contrário de alguns entusiastas de senso comum que aprovam ideias como a de acabar com o curso de formação de condutores em vez de aprimorá-lo e torná-lo mais acessível, contribuindo efetivamente para um trânsito melhor, a nossa expectativa é que o PL 4474/2020 não avance. Até porque a impressão é de que o objetivo prioritário não é ver o projeto se tornar lei, isso pouco importa porque a real intenção já foi alcançada, que é conquistar alguns votos a partir de uma medida nitidamente populista.


Caruaru-PE / Manhuaçu-MG, 17 de setembro de 2020.


GLEYDSON MENDES – Bacharel em Direito. Especialista em Direito de Trânsito. Professor de Legislação de Trânsito. Diretor de Ensino da Educate. Professor em cursos de Pós-Graduação em Gestão e Direito de Trânsito. Membro da Comissão de Trânsito da OAB Caruaru-PE. Coautor do livro “Curso de Legislação de Trânsito” (Ed. Juspodivm). Criador e colaborador do site Sala de Trânsito.


RONALDO CARDOSO - Especialista pós-graduado em Gestão, Educação e Segurança no Trânsito. Instrutor Teórico e Prático nas categorias A, B, C, D e E com formação e atuação como Diretor Geral e Ensino em Centro de Formação de Condutores (CFC). Professor em cursos preparatórios para concursos na área de trânsito. Graduado em Sistemas de Informação pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG – Carangola). Analista Educacional pela Secretaria de Estado de Educação/MG. Palestrante, atua na área de trânsito desde 1998.

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